terça-feira, 21 de abril de 2009

RAQUEL MENDES
18 Abril a 16 Maio


VEROSÍMIL: DIÁRIO ritual.

Existe uma elegante e directa simplicidade no trabalho multi-média de Raquel Mendes. Os trabalhos de vídeo são filmados em tempo real, sem edição ou manipulação. Os assuntos que capta com a câmara - a casa, pertences pessoais e reuniões de família - são familiares a todos nós. E ainda o poder real do seu trabalho decorre de coisas - abstracções - que escapam totalmente à câmara: tempo e mortalidade, amor e perda. Debaixo da superfície de mundanas aparências do quotidiano, além do poder de descrição, "Verosímil" consegue transmitir algo mais, algo que escapa ao olho.
"O mundo", escreveu Heidegger, "não é a simples recolha do quantificável (contável ou incontável), das coisas familiares e não familiares disponíveis". O mundo surge a partir de processos contraditórios e ambivalentes de perda, esquecimento e redescoberta: " o Mundo nunca é um objecto que está diante de nós e pode ser visto. "

Segundo o antropólogo Levi-Strauss, cozinhar tem um significado profundo na mente humana. Transformar o cru no cozido tem um poder mitológico: em vez de se limitar a ser um método de preparação dos alimentos, é uma forma de mediação entre natureza e cultura, vida e morte, céu e terra. Cozinhar não é apenas um meio para sustentar a vida, é também uma actividade que liga a nossa mortalidade ao sagrado e ao divino.
Os meus amigos sugerem que eu não sou um bom cozinheiro, porque não uso o amor como ingrediente. Hoje em dia geralmente cozinho apenas para mim.

O que a escrita faz com a linguagem, o relógio faz com o tempo; ambos engendram esquecimento e irresponsabilidade. A escrita, advertiu Platão, consiste em letras mortas, separadas pelo tempo e espaço da presença viva de seu autor. As palavras intemporais recolhidas em livros são simulações corruptas da palavra falada, que é formada pela própria respiração do orador, animada pela sua alma. O preço que tanto a escrita e os relógios pagam por subjectivar a experiência vivida em formas abstractas é a introdução da mortalidade. A imagem também participa desta lógica da escrita e do relógio. A imagem (fotográfica) pode pretender consagrar a memória, mas simplesmente escarnece dela. Assim como a escrita mumifica o discurso, a imagem rouba a memória, oferecendo um simulacro no seu lugar.

Estas imagens levam-nos a reflectir sobre uma delicada economia de presença e ausência, de estar e não estar. Como fotografias já marcam a ausência espacial e temporal dessas formas que apareceram ante a câmara noutro lugar. Elas são reminiscências da persistência do escondido no revelado, do oculto no manifesto, do novamente observado e esquecido no considerado e recordado.

O tempo voa, dizemos nós, voa verdadeiramente e directamente do arco do presente ao alvo do futuro. A História, dizemos nós, jamais se repete. No entanto, os nossos antepassados pensavam de forma diferente. Onde nos imaginamos a percorrer uma estrada, avançando ao encontro do futuro, desaparecendo o passado atrás de nós, os nossos antepassados posicionavam-se de forma diferente. Para eles, o futuro desconhecido fica nas suas costas, enquanto os olhos se fixam firmes sobre os contornos familiares de um passado recente. Ainda mais recentemente, a passagem do tempo era entendida como cíclica, meramente um efeito da eterna repetição das quatro estações. A distante memória da recorrência do tempo assombra a face circular do relógio analógico e o prolongado movimento dos seus ponteiros, enquanto circulam e circulam e circulam novamente. Nós, os modernos, vivemos sob um regime diferente do tempo. Os ritmos da máquina destronaram os ritmos da natureza como o pulsar do tempo industrial, e o circuito arredondado da temporalidade foi apagado, transformado numa roda de eficiência. Mas a electricidade tirou-nos o vapor, tal como o vapor tinha substituído o músculo. O relógio digital é a insígnia do tempo sob condições electrónicas. Quando cada novo número surge no visor digital desloca o seu antecessor, condenando-o ao esquecimento. O tempo já não está registado como um fluxo, foi atomizado numa chuva ininterrupta de momentos nucleares. O novo só pode aparecer destruindo o velho. Matar tempo, dizemos nós - como se isso fosse apenas uma metáfora. O tempo tem sido sacrificado no altar do progresso.

O que é o céu? "O azul do céu é um lindo azulado", diz Heidegger, "é a cor da profundidade." É a fonte primordial de todas as medidas - uma medida muito maior e mais profunda do que a oferecida pela uniformização dos sistemas de calibragem. A composição variada do céu absorve a amplitude e profundidade da visão: os seus ritmos de escuridão e luz são inexoráveis e perpétuos. Nada ultrapassa a longevidade e enquadramento da sua distância. No reconhecimento da persistente contemplação do céu, a humanidade é assegurada da sua existência na terra. Existimos, afirma Heidegger, em quádruplo: terra e mortais, céu e divindades.

John Calcutt

Sem Título ,2009, lambda print, 90x90cm

Sem Título, 2009, lambda print, 80x80cm

Sem título, 2009, lambda print, 100x100cm

Eterno Retorno, 2009, DV, 5 monitores, Still image

Poda, 2009, DV, cor, som, 50', Still image

Sombra, 2009, DV, cor, 6' 59, Still image

Vistas da Exposição